Por Jean Almeida*
A igualdade é brancaNa década de 90, Krzysztof Kieslowski recebe um convite para uma empreitada cinematográfica tão simbólica quanto audaciosa: Realizar um filme para a comemoração do bicentenário da Revolução Francesa. Kieslowski opta pelo mais óbvio, mas também mais arriscado, produzir três filmes quase simultâneos, cada um representado um dos lemas da revolução: Liberdade, igualdade e fraternidade. Nascia assim a aclamada trilogia das cores:
A liberdade é azul (1993),
A igualdade é branca (1994) e
A fraternidade é vermelha (1994).
Depois de 39 filmes e de impressionar o mundo com
A dupla vida de Veronique, o cineasta polonês constrói uma tríade não linear, com peças que interagem subjetivamente e se completam à mesma medida em que se constrói o discurso do diretor. Com tanta ligação, acaba sendo difícil dizer que estas possam ser obras independentes, mas cada filme, cada roteiro tem valência própria e de aspectos individuais bem definidos, apesar do grande contexto. Assim dá para entender quando o público opta por um dos três, quando elege seus filmes favoritos.
Nessa opção, sempre me pareceu curioso que a maioria das citações exclui o segundo, o
"Branco". Talvez por conta da mania comercial de alterar o títulos originais dos filmes, o espectador seja levado a entender que cada lema do ideário iluminista esteja isolado em cada uma das produções. Detalhe que me incomoda, uma vez que o título original da trilogia é deveras simples (em tradução literal): Três cores: Azul; Branco; Vermelho. Disposição bastante significativa, já que Kieslowski pretendia discutir os ideais franceses no contexto do estabelecimento da União Européia. Forma que, pela simplicidade, já era questionadora.
A partir das já estabelicidas interpretações, o
Branco se encarrega de expressar - ou discutir - a igualdade. Mas, "que igualdade é essa?", como pergunta o próprio protagonista, o polonês Karol Karol, num tribunal de uma União Européia multicultural que não fala sua língua. Numa clara alusão ao Papa da época, o também polonês Karol Wojtyla (primeiro Papa não italiano em 465 anos), Karol migra para a França, ou seja, da Europa para a Europa, em busca de um país melhor. Morando em Paris, seu casamento com a francesa Dominique é a primeira referência de Kieslowski à igualdade. Um matrimônio não consumado, dolorido para o marido e egoísta por parte da esposa. Em referência à
O desprezo de Godard, Karol, humilhado pela esposa, retorna ao seu país valendo-se da venda de suas reservas morais e após encenar a própria morte, prepara a vingança contra a mulher. Assim como a Polônia do fim dos anos oitenta, o protagonista ressurge, vendendo seus compatriotas, ou o próprio país, a fim de parecer um outro polonês.
Não à toa o Branco é o filme do meio, numa tentativa de descrever que tanto a liberdade quanto a fraternidade, só são possíveis por meio da igualdade. Assim, ambas tem suas aparições na trama. Como Julie (Juliete Binoche), protagonista do
Azul, que espia o julgamneto do divórcio, como a liberdade esperando que a igualdade seja estabelecida. Ou os amigos, Karol e Mikolaj, que envoltos em seus cachecóis e suéteres vermelhos como o sangue da fraternidade, se ajudam e celebram a liberdade com o grito, em uma polônia congelada em branco. O
Branco é o elo de ligação que tenta refletir os ideais revolucionários na então Europa unificada. Talvez o discurso mais pessoal e envolvente de Kieslowski, que usa sua terra natal para discutir relações internacionais de sua própria vivência, perguntando: Que liberdade é essa? Que fraternidade é essa? Enquanto a igualdade ainda é utopia. Ao fim da trilogia, no fim do último filme, o diretor nos apresenta todos os seus personagens como náufragos da catastrófica balsa da União Européia, retomando a igualdade, colocando todos no mesmo barco.
Se não a mais profunda, o
Branco vem a ser pelo menos a mais política das três obras. Mas para além da exposição clara das disparidades econômicas e sociais entre França e Polônia, Kieslowski constrói uma narrativa poética que delata nossas relações atuais, quando Karol, que não "vive" mais, se despede da francesa Dominique, que detrás das grades de uma cadeia polonesa, sinaliza que não vai se matar, mas que vai esperar e casar-se denovo.
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A igualdade é branca (Trois couleurs: Blanc)
Direção: Krzysztof KieslowskiFRA/POL/RU/SUI (1994)Roteiro: Krzysztof Kieslowski, Krzysztof PiesiewiczFotografia: Edward KlosinskiTrilha Sonora: Zbigniew PreisnerDrama / 91 minElenco: Zbigniew Zamachowski,Julie Delpy Janusz Gajos* Jean Almeida é cinéfilo e
organizador do Clube de Cinema.
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